sábado, novembro 16, 2024

Meu mural das lembranças e gratidão

 


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Outro dia vi o filme Viva, a Vida é uma Festa, da Disney e adorei. O filme baseia-se no feriado mexicano de Dia de Los Muertos. Foi o ponto de partida para uma reflexão sobre as pessoas que passaram pela minha vida, deixaram saudades e boas recordações e que eu quero homenagear neste meu post quilométrico.

Primeiro, agradeço ao meu marido António Rodrigues que fez esta arte maravilhosa aqui em cima especialmente para o meu post. Ficou linda, né??

Deixei muita gente de fora, porque decidi me concentrar apenas na família, desta vez. Hoje seria aniversário de 117 anos da minha avó Flora. É uma boa data para o post.

Morei com os meus avós paternos Flora e Mário até a separação dos meus pais, quando eu tinha de 15 para 16 anos, e por isso eles estão na prateleira lá do alto. Em seguida, estão os meus avós maternos Norberto e Irene. Na terceira prateleira, estão o meu tio-avô Domingos (o tio Mingo), e a terceira mulher dele, a tia Cida. Em seguida vem a Alayde, minha madrinha de crisma, que não é exatamente da família, mas é como se fosse. E, finalmente, a avó dos meus filhos, minha sogra, a dona Florência.

Neste post, quero fazer uma homenagem a cada um deles, que se foram, mas nunca foram esquecidos.

Flora

Minha avó paterna sempre me contava muitas histórias da sua infância em Mococa, e eu pedi para ela escrever, pois achei que eu ia esquecer tudo, e foi o que ela fez. Escreveu tudo a lápis, com a letrinha dela em um fichário e eu consegui publicar o livro Flora, minhas memórias, na Casa de Cultura de Mococa, em 2013. Ela era muito séria, mandona e exigente, mas também muito dedicada a mim. Vovó Flora, muito obrigada por ter coado tantas vezes o feijão, para eu comer só o caldinho. Obrigada por ter costurado aquelas roupinhas novas para as minhas bonecas em um Natal. Obrigada por ter me ensinado a bordar e a cerzir meias. Obrigada pelas bananas fritas que a senhora fazia e que eu disputava com o meu pai pra ver quem comia mais. Obrigada por aquela lindíssima colcha de crochê que a senhora fez pra mim. Eu me arrependo amargamente de não tê-la conservado comigo. Era maravilhosa! E hoje eu sei o trabalho que dá fazer uma parecida. Obrigada pelas almofadas em ponto cruz, por bordar as minhas iniciais em toalhas de banho e de rosto, para o meu “enxoval”. Obrigada por aquela colcha de retalhos que a senhora fez pra mim e muitas outras coisas. Obrigada por deixar pra mim aquela bolsinha de metal dourado, com seu nome gravado, que a senhora usava nos bailinhos da sua juventude. Vovó, eu nunca vou te esquecer.

Mário

Filho de italianos, meu avô Mário era a bondade em pessoa. Amava as crianças, não tem um sobrinho ou sobrinha dele que não tenha boas recordações do tio Mário. Com aqueles seus olhos azuis, ele adorava contar histórias engraçadas e  brincar com as crianças, e comigo não era diferente. Vovô, obrigada por passear comigo tantas vezes na calçada da rua onde morávamos, por fazer apitos para mim com o caule de matinhos que nasciam do outro lado da nossa rua, por apontar os meus lápis e descascar as laranjas. Obrigada por colher e me dar aquelas flores chamadas brincos de princesa, que faziam com que eu me sentisse uma verdadeira princesa. Obrigada por fazer cataventos para mim. Obrigada por me ensinar a caçar vagalumes e a prendê-los em caixinhas de fósforo (depois, nós os soltávamos). Obrigada pelo carinho, pelo colo, pela paciência, pelas histórias. E me desculpe por eu ter rasgado uma foto sua com uma menininha desconhecida, de uma das temporadas de pesca que o senhor costumava passar no Pantanal com o dr. Figueiredo. Obrigada por fazer pra mim aqueles brinquedos que voavam, quando eu estava no sítio. Obrigada pelos jogos de buraco que jogávamos também com a vovó. Obrigada por me levar na Cultura Inglesa, quando meus pais foram viajar para o Sul, e não me levaram com eles. Obrigada por me ensinar algumas palavras em italiano e também por aquelas comidas italianas que o senhor gostava de ajudar a fazer no Natal. Vovô, eu nunca vou te esquecer.

Norberto

Meu avô Norberto morreu quando eu tinha só seis anos. Não pude vivenciar esse luto, porque minha família só me contou que ele tinha morrido bem depois. Fiquei muito triste por não ter podido me despedir do senhor. Foi uma pena, porque se o senhor tivesse vivido mais tempo, eu sei que eu acabaria vencendo a minha timidez e ia conseguir cantar Dominique com o senhor ao violão, como o senhor queria e eu morria de vergonha e ficava calada. Vovô, eu adorava ouvi-lo tocar violão! Sabe que depois que o senhor morreu, eu ganhei o seu violão e a minha mãe me matriculou em uma escola de música perto de casa? A professora queria que eu tocasse os acordes daquela música Lampião de Gás. Mas eu era pequena e o seu violão muito grande pra mim. Eu não conseguia deixar meus dedinhos na posição certa que a professora ensinou e chorei, desiludida. Nunca mais voltei naquela escola e em nenhuma outra. Mas hoje o senhor ia ficar orgulhoso de mim, porque eu canto em um coral e adoro! Seu violão, eu dei para o meu primo Rogério, seu neto que o senhor não teve a oportunidade de conhecer, porque ele é filho do Leônidas, o irmão mais novo da mamãe, que já deve estar aí com o senhor, cantando Trem das Onze de trás pra frente, como ele gostava de fazer. Ele sim sabia tocar violão e cantava muito bem. Vovô, obrigada por ter deixado essa sua herança musical aqui comigo. Obrigada por ter deixado aquelas cartas de amor tão lindas que o senhor escreveu pra vovó Ene. Elas sempre foram muito inspiradoras pra mim. Vovô, eu nunca vou te esquecer.

Irene

Minha doce e querida vovó Ene… Ahhh, como me lembro daqueles dias entre o Natal e o Ano Novo, quando eu ficava com a senhora na sua casa. Era difícil tomar banho naquele banheiro que ficava do lado de fora da casa, mas a senhora me emprestava um roupão de lã xadrez, muito maior do que eu e eu ficava bem quentinha. Eu adorava dormir na sua cama com a senhora, nesses dias. Obrigada por fazer pra mim aqueles seus deliciosos bifes acebolados, e por me deixar passar o pão naquela frigideira cheia de furinhos. Hummm, como era bom! Também me lembro do seu delicioso doce de abóbora com coco. Obrigada por me dar comidinha de verdade (arroz e feijão) para eu brincar de casinha no quintal, sozinha ou com as amigas da vizinhança. Obrigada por cuidar da minha cachorrinha Meg pra mim, depois que me casei e não tinha mais como dar atenção pra ela. Obrigada por ter cuidado tão bem dela até o fim. Vovó, obrigada por ter sido sempre um amor de pessoa comigo, por nunca ter me dado nenhuma bronca, por ter tanta paciência comigo. Obrigada por me perdoar a ausência depois que me casei e que a vida complicou e eu quase não a visitava mais. Sempre me culpei por isso. Vovó, eu nunca vou te esquecer.

Domingos

Meu querido tio Mingo, quantas saudades eu sinto das férias que eu passava no sítio, em Ribeirão Preto! Obrigada por nos convidar e nos acolher tão carinhosamente. Obrigada por ter pedido para a cozinheira fazer sempre um prato mais gostoso do que o outro quando nós estávamos lá. A gente estava acabando de almoçar e o senhor já ia procurar uma receita nova no seu fichário para a refeição seguinte. Foi lá no sítio que eu comi aquela sopa chamada Minestrone pela primeira vez. Obrigada por ter me proporcionado os momentos mais felizes da minha infância, por ter permitido que eu sempre levasse uma amiga comigo para ter com quem brincar, embora também fosse muito bom brincar com os primos Beto e Leo lá no sítio. Obrigada pelos passeios de Kombi até o porto de areia, onde eu escolhia umas pedras bem bonitas pra levar pra casa. Tio Mingo, o senhor sabe que agora onde era o sítio é um bairro muito populoso de Ribeirão Preto? O Leo me contou que tem até prédios por ali. Sabia que lá tem uma escola com o seu nome? Eu fiquei sabendo disso há pouco tempo, quando estava procurando uma fotografia sua na Internet (não achei) e fiquei muito orgulhosa porque acho que o senhor merece essa homenagem. Tio Mingo, eu nunca vou te esquecer.

Tia Cida

Ela tinha medo de andar de escada rolante, mas era uma alma tão boa! Como me lembro dela… A casa do sítio estava sempre cheia de visitas e ela nunca se perturbava. Estava sempre sorridente, de bom humor. Nunca a vi triste ou brava. Ela nos deixava muito à vontade por lá, como se a casa fosse mesmo nossa. A história dela era curiosa. O tio Mingo era duplamente viúvo. A tia Cida começou a trabalhar como babá dos seus filhos e logo conquistou não só as crianças mas inclusive o patrão. Também pudera! Ela era uma criatura muito doce e afável. Depois que todo mundo ia dormir, a senhora me perguntava se eu queria pipoca. Estourava uma grande tigela de pipoca e colocava em cima da mesa. Nós nos sentávamos uma de cada lado e ficávamos conversando, não me lembro mais quais eram os assuntos que poderiam interessar uma senhora já na casa dos 50 ou 60 e uma menina de seus 14, 15. Ficávamos a falar até a pipoca acabar! Obrigada, querida tia Cida, por ter me proporcionado esses momentos tão bons! Eu me sentia importante por ter amizade com a dona da casa. Obrigada, tia Cida, por ter me recebido no sítio com tanto amor e carinho, em todas as minhas férias escolares. Tia Cida, eu nunca vou te esquecer.

Alayde

Meu Deus do céu, como eu gostava da madrinha Alayde. Ela fazia tudo pra mim, mas tudo mesmo. Não me lembro, mas soube depois que ela fez uns aventaizinhos para as garrafas de refrigerante no meu primeiro aniversário, além de todas as comidas e docinhos. Madrinha, tenho até hoje uma faquinha gravada com o meu nome que a senhora me deu no Natal de 1959. Tinha garfo e colher no conjunto, mas só sobrou mesmo a faca. Está aqui em Portugal comigo. Madrinha, obrigada por sempre fazer bombocado pra mim nas festas (não só as minhas, mas nas dos seus netos também), que era o meu doce preferido. Obrigada por ser tão carinhosa comigo. Obrigada por me deixar escolher a galinha mais gordinha para os almoços especiais que a senhora fazia pra mim e eu sempre tinha o privilégio de comer as coxinhas. (Hoje sou vegetariana, mas naquela época achava normal comer as galinhas, coitadas.) Obrigada por me acolher sempre na sua casa, território livre para as brincadeiras com a Denise, sua outrra afilhada e minha melhor amiga da rua. Obrigada pelos anéis e pulseirinhas de “chapinha” de ouro com o meu nome gravado que a senhora me deu nas datas especiais e que eu mordia e amassava e que foram doadas ao governo na campanha “Ouro pelo bem do Brasil”.  Eu ia fazer seis anos quando a campanha foi lançada pelos Diários Associados, em 13 de maio de 1964 (data da Lei Áurea, que libertou os escravos), logo após o Golpe Militar. O objetivo era arrecadar ouro e dinheiro da população, para ajudar o país a arcar com sua dívida externa, atenuando os efeitos da inflação e valorizando a moeda nacional. Eu me lembro de ter ficado em uma fila enorme para doar algumas joias da família, incluindo meus anéis e pulseiras amassadas. Madrinha, sabe que esse feriado foi banido e o que se comemora hoje em 20 de novembro é o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra? Concebido em 1971, foi formalizado nacionalmente e incluído no calendário escolar em 2003. Foi instituído como data comemorativa em 2011 e oficializado feriado nacional apenas em 21 de dezembro de 2023. Bom, né? Madrinha, sabia que eu fiz uma homenagem à senhora no livro Papo de Cozinha Afetiva, coletânea com diversos autores, lançado em 2022 pela minha editora, a Reality books? Espero que a senhora tenha ficado feliz com esse meu bilhetinho aí para o Céu. Madrinha, eu nunca vou te esquecer.

Florência

Eu não poderia encerrar esse meu post, que acabou ficando enorme, sem falar na minha sogra, a dona Florência. Ela partiu no dia 9/9/2017, com 99 anos. Foi uma das pessoas que mais me ajudou quando precisei. Sei que ninguém é igual a ninguém, mas a dona Florência era a mais original das pessoas que eu conheci na vida. A senhora se lembra daquele dia em que fomos paradas na rua por uma mocinha que tinha um blog e queria fotografá-la, com seu xale roxo? A senhora usava aqueles xales coloridos de um jeito só seu: amarelo, vermelho, azul e principalmente verde, que era a sua cor favorita. Dona Florência, muito obrigada por fazer comida pra mim, na época em que os meus filhos eram pequenos e que eu não tinha tempo pra nada. Obrigada por amarrar toda aquela comida em um  pano de prato, como uma trouxa bem firme, para eu levar pra casa aquele seu arroz gostoso, os seus inesquecíveis pasteis de carne, sua maionese, seu feijão sem igual. Obrigada por cuidar do Tom e da Biba quando eu mais precisei. Obrigada por estar sempre presente. Obrigada por me chamar de “anjo” e por me elogiar sempre para todo mundo que nos encontrasse juntas. Dona Florência, eu nunca vou te esquecer.

quinta-feira, novembro 14, 2024

Os vinhos portugueses e seus nomes curiosos

Sempre gostei de vinho. Prefiro o vinho à cerveja, desde sempre. Morando aqui em Portugal, passei a apreciar ainda mais os vinhos daqui.

Portugal é o país com a maior variedade de castas autóctones: são cerca de 250 e já estão a ser desenvolvidos estudos que podem vir a descobrir mais.

São nomes totalmente diferentes das espécies de uvas que eu conhecia: Esporão, Touriga Nacional, Baga, Castelão, Touriga Franca e Trincadeira (ou Tinta-Amarela), que originam o vinho tinto. As castas brancas incluem: Alvarinho, Loureiro, Arinto, Encruzado, Bical, Fernão Pires, Moscatel e Malvasia Fina.

O vinho verde, ah! Que delícia! Meu marido me ensinou que essa casta Alvarinho só se dá bem na sub-região de Monção e Melgaço. Quando levada a outras partes, ela não se desenvolve bem. A uva Alvarinho produz vinhos brancos refrescantes e macios, pouco encorpados e com elevado grau de acidez. A sua cor palha e aroma a fruta com toques de mel são bem características deste vinho delicioso.

Outras castas que são usadas para fazer o vinho verde português são: Arinto, Avesso, Azal, Loureiro e Trajadura (branco) e Padeiro e Vinhão (tinto). Você sabia que existe vinho verde branco e tinto? Eu não.

E nem vamos falar aqui do Vinho do Porto, que é um capítulo à parte.

Mas o que mais me chama a atenção aqui nem é o vinho em si, mas os nomes curiosos que os portugueses escolhem para os vinhos, os rótulos super criativos e, obviamente, o preço. Por pouco mais de 6 reais (1 euro, arredondando) aqui se compra um ótimo vinho. Se quiser pagar um pouco mais, a variedade e a qualidade são enormes.

Para provar o que eu digo, fotografei várias garrafas de vinho ontem no supermercado, para este post ficar bem colorido e divertido. Nessa galeria não poderia faltar o Periquita (aqui não tem a mesma conotação que costuma ter no Brasil), um dos mais conhecidos entre os brasileiros apreciadores de vinho e nome de uma casta de uva, também (outra coisa que eu não sabia). 

Porta 6 (olha que rótulo!) e Algazarra

Assobio

Capote Velho - que nome... rsrs

Colete Velho - idem... 

Comboio do Vesuvio

Coutada Velha (terreno cercado e isolado regulamentado legalmente para casa)

Diálogo Douro

Jardim Secreto (acho esse nome muito romântico!)

Monte de Amigos (adorei!) 

Papa Figos é um passarinho 

Periquita - famoso no Brasil, mas muitooo mais caro

Pouca Roupa (com o rótulo recortado, super ideia criativa!!) 

Tapada das Lebres (tapada é um terreno com árvores e cercado)

Terra Lenta (se fosse em São Paulo seria Terra Acelerada) 

O Pera Doce é bem famoso, Trinca Bolotas é um porquinho (rsrs) e Sossego é um nome delicioso! 

terça-feira, novembro 05, 2024

Neste jardim onde as árvores morrem e os lobos uivam com a alma

Fotografia feita no dia do meu aniversário de 66 anos, em Dornes, Portugal

(a mãe Natureza ainda quer continuar a dar lar aos filhos que a amam...)

“Uma pessoa de bom senso não precisa de explicações muito detalhadas;
Um tambor ressonante não precisa de ser percutido com força”.
Provérbio chinês.

Nós, espécie humana, vivemos de mitos e ilusões, porque de outra forma não seria possível, para a maior parte, a prática quotidiana da existência. Aqueles que entendem os limites da nossa cognição e, decorrente consciência de que as respostas às perguntas que todos fazemos e de que muitos  julgam, comodamente, estar esclarecidos, se encontram num plano transcendente às nossas capacidades, precisaram encontrar uma forma de ajustar as suas práticas a esta circunstância, guiando os seus passos, determinados pela linha de causa e consequência do Universo, como se o arbítrio desses passos lhes pertencesse.

Os mais inexperientes, e com a consciência mais iludida e menos esclarecida, são os que se sentem mais cheios de certezas. São arrogantes e nessa convicção vã de estarem dotados de um saber elevado, atribuem às suas ideias uma qualidade maniqueísta que se expressa com tirania e desprezo pela experiência alheia. Todo o mundo se deve vergar às regras das suas doutas certezas. Não consideram a tolerância exigida pela multiplicidade de sensibilidades humanas e pela legitimidade das suas escolhas na dignidade que assiste a todas as formas de vida e todas as consciências, dos mais diversos tipos e formas que existem nos planos e dimensões em que vivemos. Nesta prática, fazem convictos juízos e avaliações que, onde pensam estar uma visão elevada, se encontra uma cegueira boçal. Falta-lhes a percepção de que um juízo não é mais do que um acto mental de avaliar um conteúdo ou predicado formulado por um sujeito, confirmando ou negando, dentro de perspectivas éticas e práticas. Não conseguem perceber a intrínseca relatividade das suas avaliações, e o espaço inevitavelmente dubitativo das suas opiniões. Na realidade, em face de uma básica exigência de verdade, esta é impossível de se atribuir dado a consciência humana oscilar entre a percepção do falso e do verdadeiro, do provável e do improvável, do certo e do incerto. Acabam na sua tirana cegueira, estes ditadores da vida alheia a confundir nos seus juízos qualidades particulares das formulações com generalizações universais, sem respeitarem umas nem outras, numa altivez moral que ignora as cronologias, percursos e contextos das referidas formulações.

Aqui quero deixar claro que não desejo enfermar este discurso do mesmo mal que refiro. Seria uma perversidade paradoxal. A grande e fundamental diferença é que me limito a expressar uma opinião para que cada um faça a sua reflexão, se assim o entender e lhe faça o uso que quiser, tirando proveito ou descartando. Evito o maniqueísmo entre o mal e o bem, mas certamente os que promovem a dor e sofrimento sobre os outros não praticam o bem. Esse, o bem, é a prática de quem dá a liberdade de cada um afirmar a sua dignidade, num espaço de respeito que é a base de fraternidade e felicidade. E será, pelo menos funcional, assumir que é bom quem pratica o bem e…
Ressalvo ainda que é necessário perceber a armadilha argumentativa de quem, em nome da satisfação dos seus caprichos pessoais ou da, justamente referida atrás, intenção de impor a ditadura da sua opinião pessoal, confunde tudo, criando um limbo viscoso, no ponto em que a liberdade de um se encontra com a do outro. O respeito e a empatia são a varinha mágica que pode transformar esse encontro de limites numa serenidade sem conflito e guerra. Eu, por mim, sempre concordei com os versos de Raul Seixas, na canção “Sociedade Alternativa”, em que diz:

“Mas se eu quero, e você quer
tomar banho de chapéu,
…………………..
Faz o que tu queres
Pois é tudo da lei!”

Neste tempo, sobre o fio de uma navalha, cujas duas faces da lâmina reflectem a destruição ambiental e emancipação tecnológica da I.A., de forma exponencial, que irá humilhar a arrogância intelectual e moral da ilusão da superioridade da inteligência humana, para alguns de nós, cada vez mais se vai afirmando que efectivamente possuímos qualidades especiais que não usamos, porque bloqueamos devido à poluição que as nossas práticas trazem às existências que vivemos. Todos os seres animados e saudáveis possuem os sentidos de que necessitam para desempenharem o seu papel. No nosso caso e de outros animais, a intuição, é uma característica importante que poderia ajudar a uma felicidade universal que estaremos ou não determinados a atingir. A ausência dela e a persistência dos comportamentos a que assistimos e dos atos banais do indivíduo comum, se ligam aos detentores de poder, parece determinar a rota para uma tragédia, pelo menos para nós, já que poderá ser apenas uma mudança de ciclo, com regeneração planetária, adaptando às suas necessidades as formas e modelos de vida adequadas. Essa adequação parece não ser o caso da nossa espécie.

Nestas linhas finais refiro apenas alguns dos tóxicos que poluem as nossas existência bloqueando a intuição e força psíquica, impedindo assim os passos da fraternidade e bem-estar. São modos de comportamento e hábitos de consumo. O narcisismo e o materialismo, com a ambição pelo dinheiro e bens materiais que assegurem manifestações de sinais exteriores que solidifiquem o exercício do poder e a tirania sobre o próximo, assim como a escolha lúdica de actividades de competição e agressividade, como jogos profissionais e federados, vídeo jogos de violência, e concursos e competições, estão entre os comportamentos mais destrutivos. A ingestão de alimentação que desequilibre a harmonia do corpo e drogas que afectem o funcionamento pleno do cérebro estão entre os maus hábitos de consumo. Podemos falar de evitar consumir carne, alimentos fritos e com outros processamentos culinários de difícil digestão, com destaque para os ultraprocessados que até entram nalgumas dietas que se pretendem saudáveis e alinhadas com princípios filosóficos, sendo uma base do comportamento com uma hipocrisia mais ou menos consciente. Da mesma forma o hábito de fumar, seja que tipo de substância, e a ingestão de álcool, ou outros psicotrópicos de qualquer natureza são determinantes para o bloqueio das nossas especiais faculdades interiores.

Refiro ainda que a hipocrisia humana leva a que muitos dos que sobre os outros aplicam as práticas tóxicas, são os que mais pretendem ser irrepreensíveis e dotados de uma espiritualidade pia e santa.
A sociedade actual promove essas aparências cultivadas na composição da fotografia social a exibir nas redes e nos lugares públicos. E na verdade quantas públicas virtudes e vícios privados por aí andam. Com lucidez, o pranoterapeuta Valerio Sanfo, com a sua experiência, diz que todos temos capacidade de usar a nossa energia para ajudar os outros e para isso não precisamos de cursos nem aprendizagens específicas, sendo necessário isso sim a transformação interior e uma consciência dotada. Segundo ele “quem leva uma vida dominada por vícios, dinheiro, egoísmo, quem fuma, quem tem maus hábitos alimentares não pode ser um pranoterapeuta”. Poderá operar algum biomagnetismo, mas nunca poderá exercer o bem na sua plenitude. Se não respeitar profundamente a liberdade e as diferenças dos outros, se não amar toda a Natureza, nunca será mais do que um “pseudopranoterapeuta”, termo que usa para referir quem assim pretende ser o que não pode ser.

Parecendo provável a inevitabilidade do determinismo científico a reger a existência, haja a esperança de que todos os que alertamos para estas circunstâncias estejamos determinados a fazê-lo para abrir espaço a um tempo melhor, que sendo assim, por esta via determinista, estará a caminho.
Não me cabe dizer aqui o que a minha intuição diz. A evidência pragmática dos acontecimentos no mundo actual leva a uma expectativa, mas os milagres resultam apenas de falhas de análise em juízos que se julgam esclarecidos. E assim estamos de novo no conteúdo enunciado nos primeiros parágrafos.

“Quando a última coisa viva
morrer por nossa causa,
como será então poético
se a Terra disser,
numa voz flutuante
erguendo-se talvez
do chão do Grande Canyon*:
“Está feito!”
As pessoas
não gostaram de cá.”

Kurt Vonnegut Jr. (escritor norte americano de ascendência germânica, falecido em 2007)
excerto do poema “Requiem”, incluído no livro “Um homem sem pátria”.
Tradução não identificada na revista “Flauta de Luz” nº7

*em vez do Grande Canyon, poderemos dizer qualquer lugar do mundo em que a nossa espécie  promove a sua acção destrutiva, seja qualquer oceano, deserto ou grande floresta. Imagine-se uma voz sem tempo, a elevar-se, entre neblinas poluídas, das feridas profundas que estão abertas na floresta amazónica.

António Rodrigues