sexta-feira, julho 28, 2017

Cacilda e Deolinda


Minha amiga Luciana Praxedes, que tem o dom da escrita e já escreveu algumas vezes aqui, me "emprestou" mais um dos seus textos inspirados e "bordados" com muito amor e carinho para as suas duas avós, para eu publicar aqui no Consulta. Como todos os textos muito bem tramados e urdidos, o dela, embora fale de pessoas muito particulares, tem a capacidade de alcançar a universalidade das avós deste planeta Terra.

Parabéns, Lu! E obrigada pela honra de compartilhá-lo aqui no meu espaço internético.

ELAS

No final de junho comecei um texto para tentar traduzir em palavras a saudade que sinto, sentia e sempre sentirei dela, da minha avó Cacilda. A emoção não permitiu que eu fosse capaz de concluir este desabafo, mas eis que a vida, com suas esquinas e travessuras, praticamente me obriga a rascunhar algo. Para deixar o coração mais leve ou apenas para repetir ao universo o que ele já sabe, divido com vocês meu sentimento.

Cacilda

Acho que sempre será impossível falar, pensar ou escrever sobre a senhora sem deixar que algumas lágrimas me façam companhia. O tempo passou, já são quase 30 anos que a senhora virou luz e foi brilhar do lado de lá, mas ainda assim, vira e mexe, algum cisco entra no olho. 

A gente se fala com frequência, mas rolou muita coisa por aqui enquanto a senhora virou encantada. Eu cresci (literalmente!), estudei (bastante, como a senhora sempre previu), me apaixonei, desapaixonei, construí relações, fiz amigos, viajei. E lembra aquele carro cor-de-rosa que seria nosso? Eu comprei um carro! Mas não tinha cor-de-rosa. Era preto e se chamava Vulcão. E nos nossos quase três anos de relacionamento sério, nem um dia sequer, ao estar dentro dele, deixei de lembrar como seria levá-la para passear por aí. 

A mãe, sua filha querida, está lindona! Continua a figura rara de sempre, dando nó em pingo d´água. A gente ri, chora, conversa, ri de novo, conversa mais um pouco e seguimos assim: companheiras uma da outra. Juntas. Sempre juntas! Se a senhora ainda estivesse por aqui, certeza de que aquele romance histórico, “Os Três Mosqueteiros”, seria reescrito numa versão tropical, feminina, arretada e bem-humorada. 

E como falar de humor sem lembrar da sua gargalhada e do jeito que todo o seu corpinho se balançava sempre que alguém contava um “causo” ou quando a Lucilene, minha irmã e sua outra neta, aprontava das dela?! Se eu fechar os olhos agora, sou capaz de reproduzir em minha mente (ou seria no meu coração?!) o som mágico que emanava da senhora.

Não posso esquecer de contar que estou cuidando deles. Do pai e da mãe. Do jeito que a senhora faria. Mas a senhora acredita que eu tenho fama de chata?! Precisava tê-la aqui para me defender. Eles me chamam de general só porque eu controlo a comilança de doces ou pego no pé quando faltam na academia... Só isso. Mas eu não estou certa, vó?! 

Vó, eu sei que a senhora está sempre comigo. Por isso preciso pedir um favor. A minha outra vó, a Deolinda, lembra-se dela?! Então, ela também virou luz. Acho que será sua vizinha. A senhora cuida dela pra mim? Cuida dela pra gente? Só um lembrete: nunca, em hipótese alguma, pergunte quantos anos ela tem. Isso deixa a dona Deolinda “avexada”. É besteira, eu sei. Ela também sabe. Mas por que criar caso, né? O que importa mesmo é que agora o céu e o universo contam com mais duas estrelas. As estrelinhas mais arretadas que se tem notícia na história das galáxias. Nem posso calcular a bagunça boa que vocês duas irão aprontar. Promete uma coisa? Quando tocar “Cintura Fina”, do Gonzagão, pensa em mim? 

Deolinda

Sabe o par de olhos azuis mais lindos que eu já vi? São os seus, vó. Sei que a sua vida acaba de mudar, mas olha só: vai dar tudo certo. Não tenha medo, não. Já conversei com a vó Cacilda e ela irá cuidar da senhora. Tenha nela uma amiga, alguém para estar ao seu lado quando precisar de um colo quentinho e cheiroso. 

Eu tenho dificuldade com esse negócio de despedida, mas se teve algo bonito no seu desencarne foi perceber que o amor estava lá do seu lado. Amor em forma de filhos, netos, cunhados, noras e amigos. Seus meninos e sua menina estão sofrendo, cada um do seu jeito, mas todos têm a mesma certeza: a vida nunca acabará enquanto houver amor. E teve. E tem tanto amor, vó.

Até agora eu dou risada sozinha ao lembrar a nossa última conversa. Eu, inconformada, querendo entender o motivo de não ter nascido com o seu par de olhos azuis. A senhora achando graça e tentando me consolar. E eis que o pai, todo metido, pergunta se eu, a filha do Zé Vermelho, não sou a que mais parece com o meu avô Chico entre tantos rostos existentes na nossa grande família. A senhora, toda compenetrada, me olha séria para avaliar se a afirmação tem mesmo validade. E me diz: “pois é, parece mesmo com Chico. Até o jeito todo ‘renhenhem’”. Eu devolvo: “mas o que é ‘renhenhem’, vó?”. A senhora esclarece: “você é bagunceira como o Chico, minha filha”. E o coração desta neta só fez explodir de tanto orgulho. Porque percebi nessa frase que ele, o avô que a vida não me permitiu conhecer, iria ajudar a vó Cacilda a cuidar da senhora. Não sei explicar direito, mas tive uma certeza esquisita de que eu e a senhora, de alguma forma, estávamos nos despedindo.

Mas não fique triste, não. Ainda estamos muito emocionados por aqui, é verdade! Mas tudo aconteceu como deveria acontecer. A senhora não precisa olhar para trás: eu, a Jane e meus outros primos e primas cuidaremos da sua prole. Seus meninos e a sua menina ficarão bem, vó. Pode acreditar. Já sinto saudade das suas histórias sobre o sertão e do seu par de olhos azuis. Mas se tem algo que aquece o meu coração é saber que conseguimos construir uma história bonita, delicada, cheia de amor e de risos. Eu nunca levei muito a sério o seu jeitão que muitos consideravam ”seco”. Balela! Sempre soube que dentro da senhora havia muito amor. Um amor que eu conheci. E que permanecerá vivo toda vez que meus olhos avistarem o seu Zé Vermelho ou o seu Neném. O amor vive, vó. Porque a senhora sempre viverá!

5 de agosto:
§  Esta data concentra a saudade de uma vida: há 30 anos a vó Cacilda desencarnava. Foi quando soube que ela virou luz!
§  Daqui a alguns dias a vó Deolinda completará mais um aniversário. Como toda família nordestina que se preze, há controvérsias sobre a idade exata dela. Alguns, como o meu pai, defendem que ela nasceu em 1918, ano que consta em seus documentos e, portanto, faz jus aos seus quase 99 anos. Outros, entretanto, acreditam que sendo ela de 1915, já é uma centenária. Eu, se bem a conheço, aposto que ela ficaria com a primeira versão na qual ela se torna mais “moça”. Vida longa, vó Deolinda! Sua nova aventura acaba de começar! Não se esqueça de mim, tá?! Pois eu jamais esquecerei esse seu par de olhos azuis...


Luciana Praxedes Ventura

Santos, 25 de julho de 2017


(Amanhã, 26 de julho, é celebrado o Dia da Avó. Como eu não acredito em coincidências...)