quinta-feira, janeiro 12, 2017

Olho mágico


Mais uma vez tenho a honra de publicar o primeiro texto de 2017, de autoria inspirada da minha querida amiga Luciana Praxedes. 

Por aquele pequeno orifício, ela passou a observar uma vida que não era a dela, mas que desejava imensamente que fosse. A dinâmica daquele casal, meramente comum, igual a tantos outros, era a declaração mais latente de que a felicidade acontece em gestos singelos ou no silêncio de um olhar. Não há palavras, sentenças ou conversas matinais. Apenas uma rotina permeada pelo amor, pela reciprocidade, pelo bem-querer.

Espreitar a dinâmica daquele casal passou a ser o esporte favorito daquela mulher balzaquiana, uma típica leonina com ascendente em Escorpião e lua em Câncer. Ela prestava atenção aos detalhes que a pressa, a  confusão do cotidiano, insistem em camuflar. Todos os dias aquele moço alto de cabelos levemente grisalhos acordava mais cedo para preparar o café ao mesmo tempo em que folheava a página de Esportes de um jornal qualquer. Era uma ação cotidiana, quase automática, mas que revelava uma gentiliza sutil: o café pronto, quentinho, era despejado na xícara lilás, acompanhada de duas fatias de pão integral com manteiga sem sal. E uma fruta! Sim, a fruta dela delicadamente cortada em cubinhos simétricos.

Pontualmente às 7h12 a dona deste desjejum aproximava-se, sentava na cadeira posicionada na cabeceira da mesa e lançava um olhar preguiçoso para ele, que interpretava este gesto como um obrigada. Ao devolver o olhar ele também respondia: de nada, coma tudo. Esta cena trivial enchia o coração da observadora, que pulava o café da manhã por preguiça de prepará-lo. Morar sozinha tem lá suas vantagens, mas a principal desvantagem é não ter ninguém para fazer o seu café da manhã. Nem sempre foi assim, mas ao perceber que preferia um amor amigo ao sexo quente eliminou o desjejum dos seus hábitos alimentares.

O homem enche mais uma xícara de café e senta-se ao lado dela. Coloca sua mão na coxa direita da moça e morde o pão pulmann besuntado de geléia de amora. Ela retribui o carinho e repousa sua mão em cima da dele. Eles se olham. Não emitem nenhum som, nenhuma palavra. Não que fossem necessárias. Neste momento, uma lágrima escorre pelo rosto daquela que permanecia à espreita. Desejou, com toda a força do seu ser, que alguém segurasse em sua mão, que alguém se importasse. Leonel, seu gato siamês, ao perceber que ela chorava, enrosca-se em suas pernas para provar que ela não está sozinha. Tem ele.

O casal, agora de mãos dadas, levanta-se em direção ao quarto. Ao se afastarem da mulher que tudo vê deixam um rastro de dor por tudo aquilo que aconteceu e, especialmente, pelo o que não aconteceu. Fora do alcance dos seus olhos, aquele casal faz ela recordar de um verso sobre o amor. Ou seria sobre a ausência? Não importa. O amor mora do outro lado, no apartamento vizinho, na cozinha, no café quente na xícara lilás.



Luciana Praxedes

Santos, 11 de janeiro de 2017.

Um comentário:

  1. Triste realidade que vê a felicidade acontecer na vida alheia :/

    Bom 2017!!

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