sábado, outubro 26, 2024

À volta da fragilidade linguística


No Museu Amadeo Souza Cardoso, em Amarante
(Fotografia: @António Rodrigues)

Meu marido, o António Rodrigues, é português, como muitas pessoas que me acompanham já sabem. Foi por amor a ele que me mudei para Portugal. E ele escreveu um texto sobre o tema central que me motivou a escrever o post do dia 9 de outubro. Por ser um tema um pouco polémico, creio que quanto mais lados desse poliedro vierem à tona, melhor. Vamos ao texto dele:  

Há já muito tempo que a minha consciência despertou para as insuficiências e perigos da linguagem humana, ou da sua subjectividade quando as palavras expressam conceitos que, por razões diversas, psico-emocionais, contextuais, de geografia ou grupo social, a mente de quem ouve ou lê interpreta da forma que mais lhe faz sentido ou, simplesmente, lhe convém. As motivações resultam de factores para além do carácter de cada um, apesar dele também influenciar. As reacções e atitudes, no que se situa para além da razão simples, expressam a essência da pessoa.

Há poucos dias, lendo Sapolsky, acerca do comportamento humano, encontrei uma reflexão que vem em linha directa com as mnhas convicções já antigas. Cito-o, na tradução de Giovane Salimena e Vanessa Barbara, para a editora Temas e Debates. No livro "Comportamento", acerca das dificuldade de comunicar com palavras que referem sentimentos ou conceitos com ligações emocionais a sensibilidades pessoais:

"Tudo isso nos lança para um lamaçal de pântanos designativos.

Porquê a dificuldade? Conforme foi enfatizado na introdução, uma das razões e que muitos destes termos se tornaram campos de batalha ideológicos sobre a apropriação e distorção do seu significado.

As palavras têm poder e tais definições são carregadas de valores, muitas vezes idiossincráticos."

Nos últimos dias, a minha esposa publicou no seu blog, com uma ligação no Facebook, um texto em que reflete sobre a sua experiência de vida em Portugal nos últimos dois anos. Por via do entusiasmo com descobertas imensas de uma nova geografia, de novos usos e costumes, de novas gentes e atitudes, expressou-se de forma um tanto impulsiva e ingénua usando terminologias suceptíveis de equívocos. Nestes dois anos de vida em comum comigo, neste país, conheceu centenas de locais, viu as diversas geografias e suas paisagens, tomou contacto e foi bem acolhida por dezenas e dezenas de pessoas, que lhe deram a conhecer, de forma profunda, o tecido humano português. Neste momento, posso afirmar com segurança que ela conhece melhor Portugal do que muitos portugueses. Isso tem sido confirmado pelas conversas com amigos nossos que, sendo viajados, desconhecem ainda alguns locais onde já fomos. Só está ainda para ela descobrir uma pequena zona do Baixo Alentejo, onde a seu tempo iremos. Na sequência de uma alargada viagem recente, no calor da emoção, falou da cultura de Portugal versus a do Brasil, de forma imprecisa, com um texto que dada a delicadeza do assunto, precisava de mais estrutura. Afinal, não era exactamente, de cultura que se falava, mas de um "status" comportamental, nalgumas zonas geográficas, devido a políticas sociais acumuladas e a miscenizações de comportamentos e costumes, com alguma determinância do peso da influência norte-americana. Isso acrescido da memória histórica recente, apenas nessas zonas, dado que as outras são antigas e ricas, e da descaracterização cultural, pela entropia das multiplicidades. Isso levou a uma reflexão que só pecou por alguma generalização imprecisa.

Ela não precisa de que eu venha a campo para afirmar a sua visão clara e empática com o território que lhe foi berço e com os povos que o habitam. Eu sei da sua bondade interior e sensibilidade compassiva. O amor consegue ver isso, mesmo em circunstâncias adversas. Mas ela não precisava que eu aqui viesse dizer isto. É uma mulher inteira e vertical, capaz de esclarecer as dúvidas a quem as tem. Simplesmente, uma vez que tudo passou para a esfera pública eu, que sou o portugês com quem ela se casou, o marido nascido neste Portugal em que ambos habitamos, sobre mim, cai alguma inevitável suspeita de ser a origem de hipotético discurso justificativo. Como assumo a responsabilidade por tudo o que penso e faço, e recuso tudo o que me pode ser falsamente imputado aqui venho, colocar a claro algumas situações.

Em primeiro lugar, quero falar do meu conceito de cultura. O tema sempre me interessou. Fiz, há décadas, uma formaçao sólida em Ciência Política e as Ciencias Sociais sempre me interessaram. Entre 2014 e 2020 trabalhei com a estrutura do poder local, na zona em que habitamos, em actividades de produção e animação cultural que envolveram até algum estudo e investigação de raizes e costumes. Fui editor de uma revista local, onde geria e criava conteúdos. Justamente, no número de despedida, em 2020, escrevi um artigo, sobre o tema, com o título: "Do que falamos quando falamos de cultura?"

Desse artigo refiro dois excertos:

"A consciência que me parece fundamental ter acerca da Cultura, é enquanto ela se constitui como um suporte de identidade de um povo ou, em escala mais restrita, de uma comunidade, como registo vivo e dinâmico das suas tradições e memórias.

A Cultura é hoje observada sob diversas perspectivas. Para ela olham os Sociólogos, os Historiadores, os Economistas, os Agentes de Comunicação, os Políticos…

A cada um deles corresponde uma forma de observar e tratar as realidades culturais."

"Aceitando a visão exposta do que é Cultura, resulta claro que não há pessoas com mais ou menos cultura (conhecimento e informação são outras coisas), nem culturas melhores ou piores, superiores ou inferiores. Cada grupo humano possui a sua Cultura única, com valor estrutural próprio e não comparável, que foi construída através da sua história e terá de ser entendida e respeitada."

Perante este esclarecimento, e sabendo de que estamos os dois de acordo, dado o que a própria Silvia já me disse dessa concordância, a cultura de um local ou grupo não está em competição com nenhuma outra e não é nenhum jogo de futebol, não marca golos em balizas mentais, sendo que essa indústria (o futebol) pode ser vista como uma face da cultura, dispensável num mundo melhor como todos queremos, em que os jogos seriam todos amigáveis e todos saberiam perder quando fosse o caso e seriam generosos quando ganhassem. mas essas são as faces negras de alguma cultura em que também entram as touradas e outros costumes bárbaros de iniciação e rituais de passagem em certos grupos sociais. A cultura como tudo e todos os grupos de gente tem do melhor ao pior, sendo o bem o que promove a felicidade e alegria e o mal a origem da dor e sofrimento, a pressão indevida sobre o próximo.

Quanto à cultura do Brasil tenho-a em alta consideração e não é de agora. Há décadas atrás assisti a todos os concertos, acontecidos em Portugal, de Egberto Gismonti quando no Brasil lhe davam pouca atenção. Ouvia Villa Lobos, na área clássica, Hermeto Pascoal, e outros mais conhecidos da MPB. A Silvia surpreendeu-se, quando me conheceu, com o meu conhecimento e apreço pela actividade literária no Brasil, pelo interesse pelas culturas dos povos indígenas. Tenho diversas publicações sobre poesia das tribos amazónicas e costumes agrícolas de outros locais do país. Lamento, sinceramente, as intervenções colonizadoras dos europeus pelo mundo, e a isso não escapa o Cabral, no Brasil. Mas a história não se pode mudar. Não podemos transformar as Cruzadas em Descruzadas e fazer desaparecer a dor imensa que rasga o mundo árabe e outras zonas sensíveis do planeta. Mas quanto ao Brasil, precisamos ser honestos. Os únicos que possuem legitimidade para apontar um dedo aos primeiros colonizadores portugueses são os indígenas. Todos os outros brasileiros de hoje, resultam de segundas colonizações, de uma invasão de europeus italianos, alemães, holandeses... Todos foram, como se diz por cá, "chupar da teta da mesma vaca" e expropriar o índio ingénuo das suas riquezas e valores, delapidar a terra e abalar a cultura profunda desses autóctones. Nenhum português de hoje ou brasileiro de outras origens, incluindo Portugal, deve suportar um estigma com cinco séculos. Qualquer dedo apontado é uma hipocrisia ilegítima.

Os meus inúmeros bons amigos brasileiros sabem o que penso e não precisariam desta explicação, mas sinto que a devo. Sobretudo a eles, os de bom entendimento do próximo e das diferenças compatíveis. As mentes abertas, serenas, inclusivas e tolerantes, com uma sensibilidade humana bem estruturada. O Brasil é um mundo cheio de gente boa, com um carácter extraórdinário, mas, tal como em Portugal, também há os outros. Como disse acima, sou permanentemente interessado por Ciências Sociais desde jovem e sei que as generalizações são sempre origem de erros graves e injustiças profundas. Isto é especialmente verdade quando um país tem um território tão vasto, que mais é uma confederação e as realidades são díspares. Mas um facto é que há padrões de comportamentos dominantes (isso merece a atenção da sociologia) em cada zona e grupo social com fronteiras de coesão estrutural, sendo que isso determina alguns comportamentos recorrentes com características observáveis sob a peneira da análise crítica.

Desejos de tempo feliz aos de boa vontade.

António Rodrigues 

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